Minha avó não está mais aqui. Na verdade, ela se foi em 2014. Mas até hoje eu me lembro da ligação que fiz para ela, poucas semanas depois do nascimento do Caio.
Perguntei: “Por que você não me contou que era assim, vó?” E ela respondeu, com uma franqueza que me atravessou: “Porque se eu te contasse, você teria desistido de ser mãe.”
Essas palavras ficaram gravadas em mim como um tapa. Nunca esqueci.
Consigo me transportar para aquele momento com clareza. Era tarde, o sol atravessava as cortinas da sala do meu apartamento em Jacarepaguá. O Caio estava no meu colo, chorando sem parar. Eu balançava o corpo para frente e para trás na tentativa desesperada de fazê-lo dormir. Estava com o pescoço doendo de segurar o telefone fixo espremido entre o ombro e a orelha. Lembro de tudo: a luz, o som, o cheiro do quarto. E principalmente, a solidão.
Depois que desliguei o telefone, olhei ao redor e me vi completamente sozinha. Minha avó morava longe. Minha mãe ainda trabalhava. Meu marido só chegava no fim do dia. Minhas irmãs eram adolescentes. E eu, ali: exausta, perdida, com um bebê que não parava de chorar. Me olhei no espelho e não me reconheci. Respirei fundo e vesti a personagem. Afinal, maternidade não tem devolução.
Existe um rompimento invisível e profundo quando nasce um filho. Você deixa de ser quem era — para sempre. Seus pensamentos, dores, dinheiro, energia… tudo que antes era seu passa a existir em segundo plano. Quem ocupa o centro agora é esse novo ser. Que exige, que depende, que chora.
Mesmo depois de 22 anos, ainda sinto essa ruptura. E sei que não é algo só meu. Minha avó morreu aos 79 anos, ainda preocupada com os filhos. Depois com as netas. Depois com os bisnetos. E mesmo assim, não me contou porque tinha medo de que eu desistisse.
Meses depois daquela síncope emocional, voltei ao trabalho. Caio ficou com uma cuidadora. Meu coração ficou com ele. Não houve uma ruptura clara, mas havia um peso constante. Ainda assim, voltar a trabalhar foi um respiro. Era no trabalho que eu me reencontrava. Que lembrava quem eu era. Atendi muitos clientes, ocupei cargos de gestão, implantei RH do zero. Minha carreira correu em paralelo à maternidade. E eu nunca a abandonei porque ela era meu ponto de ancoragem. Enquanto eu trabalhava, eu me resgatava.
Quando Daniel nasceu, achei que estava pronta. Mais madura, mais estruturada. Mas ele me trouxe outro tipo de missão. Me tornei mãe de uma criança especial. E acho que envelheci 20 anos em um. Vivi em órbita durante uns sete, talvez oito anos. Era tanta coisa para aprender, estudar, processar… que nem me lembro da minha reação ao ouvir “mamãe” pela primeira vez. Ele já tinha quatro anos. A ficha só caiu uma hora depois, enquanto dirigia.
Nos momentos de desespero, o que me mantinha de pé era repetir em silêncio: um instante de cada vez. Uma hora de cada vez. Uma crise de cada vez.
Ontem, nos reunimos em casa para um almoço em família. Filhos correndo, mães rindo, gerações misturadas. Poderia ter postado uma foto posada, mas escolhi mostrar os bastidores. A exaustão, a culpa, as renúncias. Mas também a força que brota quando mulheres se apoiam — e se libertam da maternidade idealizada.
Porque tem algo de cruel em romantizar a maternidade como se fosse plenitude o tempo todo. A verdade é que ser mãe é lindo, sim. Mas também é solitário. Cobrado. Invisibilizado. Principalmente quando você tenta conciliar filhos, carreira, casa, identidade… e ainda sorrir para a foto.
As imagens desse dia não foram posadas. Elas são reais. Cheias de movimento, de caos leve, de gargalhadas interrompidas por braços pequenos pedindo atenção. Elas mostram o que quase ninguém tem coragem de mostrar: que ser mãe é — ou deveria ser — um ato coletivo.
Ali, naquela imagem, estão três gerações da mesma força: minha mãe, minha irmã e eu. Três mulheres em momentos diferentes da maternidade, mas todas atravessadas pelo mesmo instinto — o de amar, cuidar e resistir.
Minha mãe criou três filhas. Eu criei dois filhos. E agora minha irmã cria o Joaquim, com aquela mistura de doçura e exaustão que só quem é mãe entende.
E mesmo que a minha avó não esteja ali fisicamente, ela está em cada uma de nós. Está no jeito como acolhemos o choro. Na paciência que às vezes falta, mas a gente insiste em cultivar. No cuidado silencioso que passa de uma geração para a outra, como um fio invisível que sustenta tudo por dentro.
Ela está nos olhos da minha mãe quando observa os netos correndo pela casa. No jeito como ela ainda se preocupa, ainda cuida, ainda segura o mundo para que a gente possa desabar de vez em quando.
A maternidade não é só sobre criar filhos. É sobre formar mulheres que seguram a próxima. Que olham para trás e dizem: “Vai doer, mas você vai conseguir.” Que olham para o lado e perguntam: “Quer que eu segure ele pra você respirar?” Eu te ajudo quando você voltar a trabalhar. “Você pode sair de licença maternidade tranquila que seu cargo estará te esperando aqui. “
A maternidade só começa a ser leve quando deixamos de competir e começamos a construir rede. Quando entendemos que pedir ajuda não é fraqueza. É inteligência emocional. É autocuidado. É sobrevivência.
Cada mulher nessas imagens carrega uma história. Uma rotina. Um desafio. Mas o que nos une é esse pacto silencioso de apoio. Um olhar que diz “eu sei como é”. Um toque no ombro. Um abraço no meio do caos. Um lembrete de que você não está sozinha.
E sim, vó. Se você tivesse me contado, talvez eu tivesse mesmo desistido. Mas ainda bem que não contou.